Em pleno Século XX: Militares estaduais da Paraíba submetidos às condições análogas às de escravos

Compartilhe!


Militares estaduais da Paraíba submetidos às condições análogas a de escravos é o título de um artigo de autoria do Coronel BM\PB, da Reserva,  Ricardo Rodrigues da Costa, no qual são relatados fatos  relativos  à forma como esses profissionais, em particular os Praças,  prestavam serviço no decorrer das décadas de 1980 a 2010. A percepção do autor está fundada na Legislação e na Doutrina pertinentes ao tema, que de forma breve ele transcreve.  Ricardo expressa ainda que a maioria  dos policiais militares que passaram por essa situação atualmente estão na inatividade e continuam ainda sofrendo as mesmas humilhações, agora em forma de negação dos seus direitos, legitimamente conquistados, tais como a paridade e a bolsa desempenho. A seguir transcrevemos o texto do Coronel Ricardo.

Militares estaduais da Paraíba submetidos às condições análogas às de escravos

                                                                                                       Ricardo Rodrigues da Costa

                                                                                                              Cel BM R\R - CBMPB

 1. A doutrina e a legislação

         A dignidade da pessoa humana é um direito de todo cidadão brasileiro preceituado no artigo 1º da Carta Política do nosso país.  A legislação infraconstitucional consagra esse princípio em diferentes estatutos.

       Um exemplo marcante da aplicação desse princípio está consignado no artigo 149 do Código Penal ao tipificar o crime de redução de alguém à condição análoga a de escravo, nos seguintes termos:

Art. 149 “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: “ (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003 grifo nosso)

      Essa questão foi objeto de uma decisão do STF, quando a Ministra Rosa Webber, em 2017, em seu parecer na ADPF 489 contra a Portaria 1.129/2017 do Ministério do Trabalho afirmou “a escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX.

       A ilustre Magistrada aponta e em seguida conceitua os elementos que, isolados ou combinados configuram a condição de análoga a de escravo, na forma seguinte: cerceamento da liberdade; o trabalho exaustivo e as condições degradantes.

- O cerceamento da liberdade decorre de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. O fenômeno “trabalho forçado” pressupõe coação física ou moral, ou seja, impor-se contexto capaz de levar o prestador dos serviços a obedecer a ordens e vontade de outrem sem a possibilidade de reação, tendo como nota característica a violação da liberdade;

- O trabalho Exaustivo deve ser analisado de acordo com a particularidade de cada indivíduo, levando em conta sua estrutura física, idade, sexo e natureza da atividade realizada. Para a configuração da jornada de trabalho não basta o trabalho esgotante, mas a imposição de um trabalho em jornada exaustiva;

- As condições degradantes de trabalho para caracterização do trabalho análogo ao de escravo estão relacionadas, segundo parte da doutrina, à precariedade das áreas de vivência, instalações sanitárias, alojamento e locais para o preparo e armazenamento dos alimentos, como também a falta de fornecimento de água potável, de equipamento de proteção individual, do padrão alimentar negativo e da falta de higiene no local de trabalho, decorrentes de situação que sujeita o trabalhador tornando irrelevante a sua vontade.

  1. As condições dos militares estaduais da Paraíba

          Fundamentado na doutrina dominante, expressa nos transcritos trechos contidos na decisão da Ministra Rosa Weber, e nas decisões da Justiça Federal aplicadas em casos concretos sobre o tema condição análoga a de escravo podemos afirmar com propriedade que a maioria dos Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros da Paraíba que prestaram serviços no período de 1980 a 2010, por exemplo, foram submetidos a trabalhos na condição análoga  de escravo. Senão vejamos:

2.1 Jornada exaustiva

     As escalas de serviço eram de 24x24 horas, ou seja, jornada em que chegava a 96 horas de serviço semanal.  A CLT (Decreto- Lei Nº 5.452, de 1º de maio de 1943 já estabelecia a jornada máxima de 08 horas diária, férias e horas extraordinárias e a Carta Magna atual de 1988 estabeleceu a carga horária máxima semanal de 44 horas de serviço semanais.  Os militares trabalhavam mais que o dobro, mais especificamente 118% a mais do permitido.

      A sua permanência no serviço não se limitava a essa escala e jornada exaustiva, porque em muitos momentos tal trabalho de 96 horas semanal era superado decorrente da necessidade de participar de:

 -  formatura semanal obrigatória, que em algumas ocasiões passavam de 04 horas, chegando assim a 100 horas de serviço semanal;

 - Necessidade de esperar o substituto,  que podia atrasar ou faltar, situação em que  o militar tinha que permanecer no serviço (dobrar serviço), chegando-se assim a lastimável carga horária de 124 horas de serviço semanal;

-  Cite-se ainda que as férias de alguns militares não eram cumpridas e publicadas apenas para o militar perceber os 30% de vencimentos previstos em Lei

-  No caso da Policia Militar havia os militares que exerciam atividades nas cidades menores,  os chamadas Destacamentos, nos quais a escala de serviço era em alguns casos  de 15 dias de serviço por 02 dias de folga.

      É preciso tornar claro que não havia pagamento pelos serviços extraordinários, adicional noturno e risco de vida, o que torna cristalino a jornada exaustiva e consequente preenchimento do requisito previsto na Lei Nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003.

2.2 Cerceamento da Liberdade

     A obediência ao trabalho exaustivo de até 124 horas semanais nos quartéis ou nas cidades menores, pelo militar estadual no período de 1980 a 2010, sem direito a indenização e serviços extraordinários era imposta pelo RDPM (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, Decreto nº 8.962, de 11 de março de 1981 - D.O. de 26/04/81) que não permitia a possibilidade de reação desses profissionais.

     Essa situação acarretava violenta violação à liberdade com aplicação de medidas disciplinares, quase sempre sem oportunidade de defesa, e que guardavam as seguintes peculiaridades;

- Punições disciplinares com exposição pública das “ditas indisciplinas” nos boletins ostensivos semanais, em alguns casos sem direito a resposta, por motivos pueris a exemplo de não usar cobertura ou uniforme em desalinho ou outros como  atraso, falta ao serviço e conflito com superior hierárquico;

- As sobreditas punições disciplinares eram, em alguns casos, de 30 dias presos na celas de grades dos Quartéis,  para servirem de exemplo a quem ousasse desobedecer o não cumprimento da jornada exaustiva;

- Havia ainda a exclusão a chamada “a bem da disciplina” em que os militares eram excluídos sob os fundamento, por exemplo, de publicações de matéria jornalística que o tornava suspeito em algum fato, em serviço ou não, independente de direito de defesa e eram outra forma de exemplo aos que ousassem descumprir ou cumprir com qualquer descuido a jornada exaustiva

2.3 Condições degradantes

      O cumprimento da jornada exaustiva com cerceamento da liberdade vinha associado às condições degradantes e trabalho, expressa nas formas que seguem:

- Alojamentos em condições sanitárias ofensivas a dignidade humana, com odor desagradável, iluminação e ventilação precária e colchões de péssima qualidade. Ar condicionado era exclusivo de algumas salas administrativas;

- Refeitório e cozinha com higiene e preparação dos alimentos precários e cardápio de baixa qualidade nutricional ou de sabor.

-   Em período de festas populares os efetivos alocados para o policiamento eram  acomodados  em sala de aula de colégios com colchões no chão e alimentos servidos pelas prefeituras, nem sempre de qualidade condizente

  1. Conclusões

      Diante do exposto, evidencia-se que as condições gerais em que os militares estaduais da Paraíba, atualmente na inatividade, cumpriram os seus 30 anos de serviços causaram-lhes esgotamentos físicos e mentais, além de comorbidade das mais diversas. Essa situação leva muitos deles às precárias condições de saúde, com perspectiva de vida média abaixo dos 70 anos.

      E legislação pertinente ao tema prever que o órgão fiscalizador do cumprimento das normas trabalhistas inclua as Empresas identificadas como empregadoras de pessoas reduzidas às condições análogas a escravos, em um Cadastro, que passará a sofrer restrições relativas à legislação trabalhista. Essa situação caracteriza a denominada “lista suja”.

      Dessa forma, o estado da Paraíba deveria ser inserido na “lista suja” do trabalho escravo, ou seja, no cadastro de empregadores que submeteram seus Militares Estaduais às condições análogas a de escravo.

     E nos dias atuais são os mesmos Militares Estaduais que viveram como escravos modernos das Instituições Militares da Paraíba e se tornaram idosos e Inativos ou Veteranos, em muitas situações com estado de saúde precária, e que estão a sofrer do mesmo Estado e Governo da “lista suja”.

         Esses sofridos inativos, desde 2011, sobrevivem com o pior salario do Militar Estadual inativo do País e associado a isso o Governo vem descumprindo ou protelando decisão judicial transitada e julgada e aplicação da Lei que determina a Paridade entre ativo e inativo, mediante subsidio ou gratificação complementar.

     Novo descaso, humilhação, indignidade de um Estado que deveria não apenas reconhecer os valores e serviços prestados, mas também pedir desculpas por todo mal que causou aos homens e mulheres de bem da policia e bombeiro militares, como forma de minimizar a dor que causou a quem viveu e dedicou sua vida ao bem estar da sociedade paraibana.

O MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2011534-25.2014.815.0000 que trata da implantação da Bolsa Desempenho aos proventos do militares inativos é o mínimo que o Governo e o Judiciário deveriam cumprir para remediar um pouco o sofrimento desta geração de militares que viveu uma vida inteira de injustiça.

     O Governador ao se negar, de forma criminosa, a cumprir decisões judiciais que concedem justos benefícios aos inativos e pensionistas da Policia Militar da Paraíba e Bombeiros Militares o faz de forma cruel e moralmente degradante.

    É um total descaso à dignidade desses homens e mulheres que, apesar de todos os óbices aqui relatados, cumpriram com dignidade a árdua função de mantenedores da ordem pública.

“A justiça pode caminhar sozinha. A injustiça precisa sempre de muletas, de argumentos”. Aristóteles

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos”. Mateus 5,6

  Veja também https://tab.uol.com.br/edicao/trabalho-escravo/#cover     Astúcia policial: Um valioso instrumento operacional. Uma canção como arma     A emancipação do Corpo de Bombeiros da Paraíba     Porque somos militares

Compartilhe!


Subscribe
Notificação de
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments