Por amor ao pai: Vestiu a primeira farda no cemitério

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              A influência que os pais exercem sobre a personalidade e a escolha da profissão dos filhos é inquestionável. Em todas as atividades humanas esse fato pode ser constatado. Na Polícia Militar são inúmeros os policiais que herdaram dos pais e passaram para os filhos o amor à causa policial, como são, por exemplo, os casos das famílias Lira, Cordeiro, Monteiro, Alencar, Chaves, Wolgrand, Benício e tantas outras. Todos os integrantes dessas famílias revelaram uma inegável aptidão para a atividade policial militar e demonstraram profunda admiração e respeito aos seus antecedentes.
     Entretanto, os fatos que aqui vamos abordar revelam uma peculiaridade na forma como essa admiração, respeito e carinho ao pai foram expressos. É o caso da relação entre o Sargento Andrade, atualmente no serviço ativo, prestando serviço no 1º Batalhão, e o seu pai, o Sargento que ficou conhecido por Quinze Quinze.  Para melhor compreensão das atitudes desse filho, precisamos fazer referência a alguns detalhes da vida do seu pai, o que nos leva também a nos reportar um pouco sobre um dos aspectos da história recente da Corporação. É o que passamos a fazer.
      Mesmo depois da implantação do Policiamento Motorizado, em 1970, os Postos Policiais, também denominados de Comissariados de Polícia, continuavam sendo uma importante forma de Policiamento na cidade de João Pessoa. Os integrantes desses destacamentos, que em média eram compostos por doze homens, conheciam as pessoas dos bairros onde atuavam e eram por elas conhecidos, o que facilitava a execução das atividades policiais. Os Comandantes desses Destacamentos quase sempre eram Sargentos do serviço ativo ou da reserva. Eles também exerciam as funções de auxiliares imediatos dos Delegados de Polícia da cidade, executando atividades preliminares de polícia judiciária, pelo que eram também denominados de Comissários de Polícia.
       As sedes dos Destacamentos também eram conhecidas por Postos Policiais. No início da década de 1960 existiam formalmente na cidade de João Pessoa 12 Postos Policiais: Miramar, Índio Piragibe, Cruz das Armas, Jaguaribe, Roger, Ponte Sanhauá, Expedicionários, Branca Dias, Tambaú, Torre, Manaíra e Cabo Branco. Essas atividades tornavam os Comissários muito conhecidos e respeitados pelos moradores dos bairros. Alguns deles se tornaram famosos pela forma eficiente como desenvolviam essas atividades e ganhavam prestígios junto às autoridades.
O Sargento Quinze Quinze
         O Sargento Severino Alves de Andrade, mais conhecidos por Quinze Quinze, uma alusão à sua matrícula funcional, foi um desses famosos Comissários de Polícia das décadas de 1960 e 1970. Nascido em 8 de maio de 1918, em Itabaiana, ele assentou praça na Polícia Militar em 3 de janeiro de 1944, depois de ter  prestado o serviço militar obrigatório e trabalhado por sete anos na Companhia de Saneamento da Capital, onde ingressou com  apenas treze anos de idade. A condição de reservista de primeira categoria lhe dispensou do Curso de Formação de Soldados,  o que era comum naquela época, passando de imediato à execução de atividades operacionais.
      Em 1954 Andrade foi promovido a Cabo, graduação em que começou a exercer as funções de Comissário de Polícia nos bairros de João Pessoa. Nessas atividades ele conheceu e fez amizade com o Doutor Arquimedes Souto Maior, que era Juiz de Direito e depois se tornou Desembargador. Admirador desse ilustre magistrado, o Cabo Andrade buscou imitá-lo de alguma forma, e passou a fazer uso de um impecável terno branco, o que era permitido aos Comissários, mesmo em serviço.  Essa indumentária deixava mais elegante o moreno alto, forte de feições finas e de um bem tratado bigode.   Promovido a 3º Sargento em 15 de julho de 1964, Quinze Quinze passou para a reserva em 2 de dezembro do mesmo ano, na graduação de 2º Sargento. Mesmo fora do serviço ativo, ele continuou no exercício das funções de Comissário de Polícia por vários anos.
   Um dos filhos de Andrade se tornou seu extremado admirador. O pequeno  Luiz Cláudio de Andrade só tinha oito meses quando Quinze Quinze passou para a reserva e por isso não se lembra de ter visto o seu pai fardado, nem em fotografia. Mas o jovem Andrade, carinhosamente chamado de Russo pelo seu ardoroso pai, lembra-se dos cuidados que seu genitor tinha para manter os vincos do terno branco, e das constantes limpezas que ele fazia nas armas que portava, na sala de sua casa, no bairro do Rangel.  Russo, que terminou o ensino fundamental no Colégio Estadual de Jaguaribe,  também acompanhava seu pai nas frequentes visitas que ele fazia ao Doutor Arquimedes, a essa altura já aposentado, e nessas oportunidades ficava ouvindo as histórias contadas pelo visitante e pelo anfitrião, que sempre se reportavam a casos de polícia. E assim foi se criando o jovem Andrade.
     Em 1982 Andrade prestou o serviço militar obrigatório no 15º Regimento de Infantaria Motorizado, onde passou um ano e três meses.  Depois de ter dado baixa do Exército, Andrade tentou três vezes ingressar na Polícia Militar, sem logra aprovação nos concursos.
    Em meados de1987, Quinze Quinze, aos 69 anos de idade, trafegava a pé em uma artéria do Rangel, numa noite de chuva, quando foi atropelado por um automóvel, ficando gravemente ferido. Desesperado Andrade, agora um moreno baixo e forte, do tipo atarracado, acompanhou todo tratamento que o seu pai recebia, permanecendo no hospital São Vicente de Paula, por todo tempo. Em uma das muita conversa que filho e pai tiveram nesse período, Quinze Quinze pediu para que seu corpo não fosse necropsiado.
        No dia 3 de outubro de 1987, Quinze Quinze faleceu e Andrade, em clima de muito pesar, começou a preparar o velório. Ao chegar no hospital foi informado de que o corpo seria encaminhado ao IML. Andrade virou uma fera. Falou com o Diretor do Hospital, argumentou, chorou, esperneou, e nada. Irritado ele se dirigiu ao necrotério e colocou o corpo do pai nos braços e já ia saindo quando chegou a Segurança e o impediu.
     A confusão foi grande. A Polícia foi chamada. E Andrade tá lá com o corpo do pai nos braços. O camburão da Polícia, uma Veraneio, caracterizada nas cores preta e branca, prefixo 320, de forma brusca subiu a rampa de acesso ao local de desembarque de urgência do hospital.  A Guarnição, comandada pelo Sargento Edson, mais conhecido por Cambalacho, desembarcou e se dirigiu ao local da confusão, ajustando o uniforme e o equipamento, e caqueando os coldres. Um grupo de servidores do hospital e um médico conversavam com Andrade tentando demovê-lo de sua pretensão. E ele intransigente e ainda com o corpo nos braços.
       Cambalacho que conhecia Quinze Quinze e Andrade, e tinha lábia para derrubar avião, ouviu as partes e resolveu falar com o Médico em particular. Pouco depois o Sargento desceu da sala do Diretor com autorização para liberar o corpo. Um agente funerário, sempre presente nessas ocasiões, se encarregou das demais providências.
   Na tarde daquele sábado, o Sargento Quinze Quinze foi sepultado no Cemitério Senhor da Boa Sentença em meio a muita comoção dos seus familiares e amigos. Pouco depois da triste cerimônia, só Andrade permaneceu no local. Em frente ao túmulo, de pé, imóvel e de olhos fechados ele parecia meditar. De repente fazia gestos, balbuciava palavras indecifráveis e enxugava as lágrimas. Voltava à meditação. E assim sucessivamente. De quando em quando fazia uma oração.  E ai ficou até às dez da noite quando foi retirado pelo vigia do Cemitério.  No dia seguinte, antes das oito da manhã ele voltou e repetiu tudo até o fim da tarde. Fez isso por mais de dez dias. Chegou a burlar a vigilância do Cemitério para permanecer durante a noite, mas foi descoberto e retirado. Estava em uma depressão terrível. Começou a perder peso.
O Sargento Andrade
      No dia 16 de outubro daquele ano, uma sexta-feira ensolarada, Andrade estava em um dos seus momentos de meditação quando uma pessoa colocou as mãos nos seus ombros e lhe abraçou com afeto. Era o Doutor Arquimedes que tinha tomado conhecimentos da situação e resolveu ajudar ao filho do amigo.  Andrade assustou-se com a atenção e carinho de tão importante autoridade. Depois de poucas palavras eles saíram do Cemitério conversando. Arquimedes disse que queria ajudar e perguntou o que Andrade queria ser.
     - Quero ser um policial como foi meu pai para honrar o nome dele, respondeu Andrade de forma resoluta.
     - Vou lhe ajudar, garantiu o magistrado.
     No final daquele ano Andrade finalmente foi aprovado em um concurso e ingressou na Polícia Militar para fazer o Curso de Formação de Soldados no 1º Batalhão.
     O coordenador do Curso era o Tenente José Morais, um Oficial muito exigente e até temido pelos recrutas.  Andrade, que já era reservista, se adaptou fácil à disciplina policial militar e logo se revelou um bom recruta. No dia em a turma recebeu o primeiro uniforme, Andrade procurou o Tenente Morais e fez um pedido inusitado.
   - Tenente, disse o recruta, eu peço permissão para vestir minha  primeiro  farda no Cemitério, em frente ao túmulo do meu pai.
      Depois de cobrar explicações, e muito meditar, Morais achou o pedido estranho, mas autorizou. Desconfiado que o recruta poderia está aprontando alguma coisa, o Oficial designou um P/2 para acompanhar, deforma discreta, a execução daquele  estranho pedido. No relatório verbal, o araponga de Morais confirmou que realmente o recruta ficou diante do túmulo, vestiu a farda por cima da roupa, fez continência em direção ao túmulo, se apresentou, falou algumas palavras, deu continência de novo, fez meia volta e se retirou.
     Estava cumprida a primeira parte da promessa: ser policial militar. Começava a outra parte: ser um bom policial militar para honrar a memória do pai. E ele está cumprindo. Que o digam seus atuais companheiros de trabalho no serviço de Rádio Patrulha do 1º Batalhão e os seus superiores hierárquicos nessas atividades.
  E aí está, o Sargento  Luiz Cláudio de Andrade, o honroso sucessor do Cabo Quinze Quinze.
Sargento Quinze Quinze (Pai) e Sargento Andrade (Filho)

Por amor a farda, o Sargento Andrade se casou fardado.

O Sargento Luiz Cláudio de Andrade se casou fardado

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1 Comentário em "Por amor ao pai: Vestiu a primeira farda no cemitério"

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villegran Castro
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Sgt Andrade sempre fala que somos os melhores!!! Se está desmotivado, fale com ele 10 minutos, você vai rir bastante e saber que ele ama ser policial militar.