Capitão Gonçalo: O maior folião do Clube dos Oficiais

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    Quando falamos dos memoráveis carnavais do Clube dos Oficiais, nos vem à lembrança a figura de um grande folião: o Capitão Gonçalo Ferreira Lopes. Durante a década de 1970 a sede do Clube era na Avenida Cabo Branco, e o carnaval começava ao meio dia se prolongando até as cinco da tarde. Em termos de animação era um dos melhores carnavais diurno da cidade, rivalizando com o carnaval da Caixa Econômica, em sua sede no Altiplano Cabo Branca.

     A Orquestra, que durante muitos anos foi dirigida pelo Maestro Zito, era formada por alguns integrantes da Banda da Música da Polícia Militar. Por tradição, a primeira música executada era o frevo vassourinha. Os foliões, que ainda não estavam no clima, ficavam ansiosos aguardando que alguém abrisse o salão. E era sempre a Gonçalo que cabia essa tarefa.
      Ao som dos primeiros acordes a figura alta, magra, de nariz proeminente, e ostentando seus mais de sessenta anos bem vividos, surgia Gonçalo. De bermuda, camiseta, alpercatas de couro, sem nenhum adereço carnavalesco, ele se dirigia ao centro do salão. Braços abertos, peito erguido, passos cadenciados no frevo, no estilo tesoura, executados de forma quase didática, fazia lembrar a figura de um mestre-sala.  Com um giro sobre uma perna, com a outra dobrada, e gesticulando para os foliões, Gonçalo expressava um convite à folia.
     Aos poucos o salão ia se enchendo. Alguns casais já familiarizados com aquela situação, e para disfarçar a timidez, iam colocando tiras de serpentina no pescoço de Gonçalo, e formando uma roda em volta dele, imitando seus passos. Outros jogavam confetes no salão e sobre os cabelos grisalhos daquela figura tão carismática.  A figura carnavalesca estava delineada. Com o salão cheio, Gonçalo sumia na multidão. E tome frevo no salão.
     Quando o maestro percebia que o cansaço dos foliões estava chegando, dava uma aliviada. Começava uma rodada de marchas. Muita gente voltava para as mesas para se refrescar um pouco. A silhueta de Gonçalo reaparecia no salão. O mesmo entusiasmo, a mesma alegria. Os gestos largos agora eram complementados com o canto das músicas executadas pela Orquestra. Mesmo pouco afinado, ele incentivava os foliões, no salão, ou nas mesas e corredores, a também cantarem. Bandeira branca amor, não posso mais. pela saudade....  E todos cantavam com ele. Nesse embalo Gonçalo ia puxando os amigos, em todos os setores do Clube, e fazendo um trenzinho, que circulava entre as mesas e voltava para o salão. Aí o trem se desfazia e dava formação a pequenos grupos de cinco ou mais foliões, que lado a lado, e com os braços sobre os ombros uns dos outros, passavam a circular no salão, sempre cantando e dançando, com passos cadenciados para frente e para trás. Gonçalo sumia de novo.
Quem não conhecia Gonçalo poderia pensar que estava diante de alguém de sanidade mental comprometida ou sob o efeito de bebida alcoólica. Mas ele era um homem lúcido, auto ditada, inteligente, que fazia poesia e escrevia sobre a vida de diversos dos seus companheiros da Corporação. Convivi com ele mais de vinte anos e nunca o vi bebendo.
      Quem acompanhava essas maratonas de Gonçalo não conseguia entender como aquele corpo tão franzino, e quase septuagenário suportava tanto esforço físico. Também se perguntava o que ele fazia durante suas ausências do salão.
     Um dia, lá pelas três da tarde, em meio ao cansaço provocado pelos passos de vassourinha, que me consumiam muita energia, no tempo em que o joelho deixava, resolvi me refrescar na beira mar. Era só atravessar o asfalto. Muitos foliões faziam isso. O controle na Portaria para esse fim era muito flexível. Gonçalo seguia na minha frente, acompanhado de sua esposa Dourinha, uma mulher muito simpática, paciente e discreta, que era uma espécie de guardiã daquele velho guerreiro, mas que não participava das suas façanhas carnavalescas.
        Na faixa da areia o casal parou em uma sombra. Fiquei de longe observando. Gonçalo tirou a camisa, a alpercata e a bermuda e entregou tudo a Dourinha. Estava com um calção de nylon, cinza, até o joelho. Parecia orgulhoso de sua magreza. Fez alguns exercícios de alongamento e correu para o mar, de braços abertos e na ginga da música da orquestra, que da praia dava para ouvir.
Mergulhou durante uns cinco minutos. Na volta, deitou-se na areia, de papo para cima e ficou bem quietinho, durante poucos instantes. De repente o incansável folião levantou-se e entrou no ritmo da orquestra, com os mesmo gestos e a mesma empolgação.  Os banhistas observavam a cena sem nada entender.
      O casal voltou ao Clube. E Gonçalves sempre dançando. Observando aquilo tudo com muita curiosidade, também voltei.  Na portaria Gonçalo bateu a areia do corpo e seguiu em direção ao banheiro. Uma das regras mais rigorosas do Clube era a proibição do uso de trajes de banho no salão.
      Voltei para minha mesa e cometei essas cenas com os amigos, em meio a muitos risos e palavras de carinho e admiração ao nosso velho guerreiro.
       De repente, lá vem o grande folião, com outra bermuda e outra camiseta, mas com a mesma alegria. Parecia que estava iniciando tudo de novo.  Era assim durante todo carnaval.  Ele trocava de roupa três vezes por dia, obedecendo ao prévio ritual do banho de mar e da aparente meditação na areia.  Será que era essa a explicação para tanta energia?
     Aquele era o último dia de carnaval. Às quatro e meia a Orquestra desceu do palco, deu um giro no salão, acompanhada dos foliões, e em seguida se dirigiu para a praia. No meio da rua uma Viatura do Corpo de Bombeiros ligou as mangueiras e deu um banho nos foliões que cantavam “Oh quarta-feira ingrata.. chega tão depressa..”. Era o fim daquele carnaval. Na faixa de areia, os foliões que ainda tinham fôlego arriscavam um mergulho para tirar a ressaca, como diziam.
     Pois é, lá entre os remanescentes da folia estava Gonçalo conduzindo os mais afoitos para o banho.
     Antigos carnavais.  Velho Gonçalo. Quantas saudades.
 
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