Ligação do Governador ou trote? Um drama para um jovem Tenente

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       Era uma ligação do Governador ou trote? Essa questão foi um drama para um jovem Tenente que estava no exercício das funções de Oficial da Dia em um Quartel no sertão, em um domingo, durante uma campanha eleitoral muito disputada. É esse fato que aqui vamos relatar.

        O respeito irrestrito aos superiores hierárquicos, que não pode ser confundido com subserviência, é um dos muitos valores absorvidos pelos militares durante a sua formação e que é cumprido com rigor durante suas atividades profissionais. A legislação penal militar e os regulamentos disciplinares tratam essa questão com bastante severidade.  Com o passar do tempo o militar fica de tal forma condicionado a observar essa norma de conduta que desrespeitar ou tratar sem a devida atenção um superior hierárquico constitui um drama interior, independentemente da punição que lhe possa ser aplicada. Essa situação foi vivenciada por um jovem Tenente no fato que passamos a relatar.

        Em 1982 ocorreram, em todo o Brasil, eleições diretas para Governador, depois de 17 anos de eleições indiretas para esse fim.  Na Paraíba o último governador eleito pelo voto do povo tinha ocorrido em 1965, com a eleição de João Agripino.
       Tarcísio Buriti, o último Governador eleito pelo processo indireto, governou o Estado no período de 1979 a 1982. Em maio daquele ano ele deixou  o Governo para disputar uma vaga na Câmara Federal, ocasião em que Clóvis Bezerra, o Vice-governador, assumiu esse cargo. O Deputado Federal Wilson Braga, que tinha uma postura predominantemente populista, era candidato a Governador e despontava como amplo favorito.
       No dia 15 de agosto daquele ano, um ensolarado domingo, a comitiva de Wilson Braga fazia campanha na região de Conceição e Piancó, principal reduto eleitoral do Candidato.  A jornada tinha começado logo pela manhã e estava prevista para ser encerrada a noite na cidade de Olho d’Água. No início daquela tarde, a direção da comitiva começou a se sentir insegura. Começaram então a se articular com autoridades que pudessem providenciar segurança para o evento. Como é natural em situações desse tipo, os assessores se sentem com prestígio para se articular diretamente com o Governador  e para obter a atenção desejada precisam pintar um quadro de gravidade maior que o real. Pelo desdobramento dos fatos, é possível que ele tenham imaginado que Wilson poderia sofrer um atentado naquele dia.
         No 3º Batalhão de Polícia Militar, em Patos, o Oficial de Dia, naquele domingo, era o Tenente João Pereira de Sousa, que no exercício dessas funções tinha poder para mobilizar e deslocar efetivos em face de qualquer emergência referente à manutenção da ordem publica na área daquela unidade policial, na qual se achava a região de Piancó.
       Passava das três da tarde quando o Tenente Pereira, que estava no interior do Quartel, recebeu um telefonema.
   - Alô. 3º Batalhão. Tenente Pereira, Oficial de dia, boa tarde.
  - Cadê Deuslírio? Perguntou o interlocutor, com ar autoritário e percebível aborrecimento.
 - Não está no Quartel, hoje não tem expediente. Respondeu Pereira.
 - Então cadê Luiz Ferreira? Perguntou o interlocutor em tom  ainda mais autoritário.

     Naquela época, alguns amigos do Comandante do Batalhão de vez em quanto ligavam para o quartel, e a título de brincadeira, se passavam por autoridades.  O Tenente, que já sabia desses trotes, foi ficando chateado com a forma como estava sendo tratado, mas, inicialmente se conteve.

  - O Major Luiz Ferreira também não está. Mas eu sou o Oficial de Dia. Se for problema do Quartel eu represento o Comandante na sua ausência.
 - Aqui é o Governador Clóvis Bezerra. E Tenente não representa nada. Não é coisa nenhuma.  Quero falar com o Comandante ou com o Sub.
    O Tenente perdeu as estribeiras e certo que estava diante de um trote, respondeu:
 - Você não é Governador de pôra nenhuma e deixe de frescura. 
       Disse isso e desligou o telefone.

          Em seguida o Tenente se levantou, foi na geladeira, tomou água, voltou para a poltrona onde estava assistindo TV e começou a pensar sobre o telefonema. E se fosse realmente o Governador? A ligação não passaria antes por uma secretária ou um assessor? Bem se fosse um trote ou não, já não tinha mais o que fazer, concluiu Pereira.  Mas, por mais que tentasse não conseguia se concentrar na televisão. As possíveis consequências daquele ato não paravam de ser imaginadas. Sindicância, IPM, prisão, transferência, tudo era possível.  Esse martírioi durou quase uma hora. Absorto nesses pensamentos, a atenção de Pereira foi despertada pelo toque do telefone.

     Pronto, pensou ele. É a ordem para eu mim recolher ao Quartel em João Pessoa.
  - Alô. Disse o angustiando Tenente, já sem ânimo para seguir o procedimento padrão no atendimento dessas ligações.
  - Aqui é o Coronel Talião. Quem fala?
       Eu bem que sabia, é o Comandante Geral que vai determinar meu recolhimento, pensou Pereira antes de responder.
  - Pois não Comandante.   É o Tenente Pereira, Oficial de dia. Às suas ordens.
   - Pereira, Wilson Braga tá fazendo campanha em Piancó e chegaram-me denúncias de que tá havendo graves problemas de segurança pública por lá. Veja o que você pode fazer.
   - Comandante, posso ir pra lá agora mesmo com 30 recrutas que estão de plantão no Quartel.  Inclusive tenho transporte pra isso. Pode deixar que eu resolvo isso agora mesmo.
  - Então vá lá, resolva e boa sorte. Disse Talião, e desligou.

    Pereira esqueceu a ligação anterior, se dirigiu ao pátio do Batalhão, colocou a tropa em forma, embarcou, e partiu para Piancó em duas camionetes abarrotas de policiais. Uma parte estava armada de cassetete, e outra de fuzil. Todos com o uniforme azul petróleo, cinto de guarnição e capacete.

     Chegando a Piancó, depois de conversar com os dirigentes da comitiva e se informar da situação, Pereira distribuiu o efetivo em patrulhas, e seguiu a carreata para Olho d´Água. Nessa cidade as patrulhas foram dispostas em pontos estratégicos e longe da concentração popular, conforme era a orientação do Comandante do Batalhão. Quando o comício terminou já passava das dez da noite. Não houve nenhum incidente relacionado à ordem publica.  
      Quando a tropa foi reunida para embarcar de volta ao Quartel, Wilson Braga chegou ao local e, bem ao seu estilo, apertou a mão do Tenente Pereira e a de cada um dos policias, elogiando o trabalho realizado.
      Depois da refeição da tropa, preparada às pressas no Quartel ainda naquela noite, Pereira foi para o alojamento certo do dever cumprido. Mas não conseguia dormir. Era possível que os fatos de Piancó tivessem relação com o telefonema que recebeu à tarde. Ou seja, era possível que não tivesse sido um trote. Portanto, ainda poderia ser punido.  Passou a noite fritando na cama.
        Por precaução, Pereira não comentou nada sobre essa ligação com seus companheiros do Batalhão. Mas continuou apreensivo.
        Passava das dez horas da manhã da segunda-feira quando Pereira foi chamado às presas ao Gabinete do Comandante. Quando ele entrou na sala, meio abatido, lá estavam todos os Oficiais da Unidade.
   - Pereira, disse o Tenente Coronel Deuslirio, o Coronel Talião acabou de ligar e me mandou lhe chamar agora mesmo para, na presença dos Oficiais, elogiar o trabalho que você fez ontem em Olho d’Agua.  Disse inclusive que toda comitiva de Wilson Braga ficou muito satisfeita com o serviço. Portanto, sinta-se elogiado.     Pereira respirou aliviado,

    Agora me explique o que foi feito, exigiu Deuslírio.

          E Pereira detalhou o que foi feito na operação, mas omitiu o fato da ligação recebida do Governador.  Até hoje ele tem dúvidas se foi trote ou não.
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