A indústria da seca

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    A indústria da seca era a denominação empregada pelo povo  para definir o conjunto de  ações desenvolvidas pelo Governo para prestar assistência  à população sertaneja atingida pelos longos períodos de estiagem e  que, na verdade, serviam muito mais para desvios de recursos públicos em benefícios da classe política. Aqui vamos  enfocar situações que bem caracterizam essas práticas, assim como abordar aspectos da religiosidade do povo sertanejo em face  das dificuldades provocadas pela falta de chuva.

    Só  a força da fé do sertanejo é capaz de fazê-lo resistir as agruras dos inclementes períodos de secas que ele enfrenta. Aqui vamos relatar o testemunho de um desses momentos, ocorrido em 1983 na cidade  de Cajazeiras, alto sertão da Paraíba

     No posto de Capitão exerci as funções de Comandante da Companhia de Polícia de Cajazeiras, no alto sertão da Paraíba, de janeiro de 1983 a setembro 1984.  Além da cidade sede, a Companhia era responsável pelo policiamento de mais 15 cidades, inclusive Souza, uma das maiores da região.

    Naquele período passei por inesquecíveis experiências como profissional e como cidadão. Convivi de perto com o tormento da seca, com os mecanismos governamentais destinados a prestar auxilio à população e seus meandros de desvios de recursos públicos e, sobretudo,  tive contato com a cultura e a fé do sertanejo.     De uma maneira sintética, passo a narrar parte desses momentos como forma de registrar detalhes de importantes aspectos da nossa cultura.

                 Não choveu no sertão da Paraíba no dia de São José de 1983. Na crença do sertanejo estava configurado o início do quinto ano consecutivo de seca. A situação que já era de muito sofrimento para uma vasta população de pessoas que dependiam unicamente das atividades agrícolas naquela região, passou a ser ainda mais complicada.

       A partir de então, milhares de humildes agricultores, desnutridos, de rostos enrugados e tostados pelo sol, mãos calejadas, maltrapilhos, olhares perdidos, portando sacos de estopa nos ombros onde pretendiam recolher donativos, acompanhados de mulheres e filhos, perambulavam por todas as cidades polarizadas por Cajazeiras e Souza em busca de ajuda para saciar a fome, em situação de desespero.

           Diante dessa situação, a Polícia Militar, através do comando local, se aliou aos clubes de serviços, entidade religiosas, integrantes da imprensa e comerciantes, que faziam campanhas para arrecadar e distribuir mantimentos com esse contingente de sertanejos transformado pela seca em uma população de miseráveis. Nessas ações a parte mais difícil era a distribuição dos donativos, uma vez que por maior que fosse a quantidade de gêneros adquiridos, era sempre insuficiente para atender às multidões de famintos, o que exigia  a intervenção da Policia Militar.

       Nesse trabalho a polícia tinha de agir com autoridade para ordenar a distribuição, e com muita sensibilidade para dividir com justiça os sempre escassos donativos, que mal davam para sustentar uma família durante uma semana. Nessas ações, que eu comandava pessoalmente, tive oportunidade de fazer contato direto com os agricultores e tomar conhecimento dos dramas de cada família. Aos poucos eu ia me envolvendo com aquela situação.

        As campanhas de arrecadação de gêneros se sucediam semanalmente, mas a quantidade recolhida era cada vez menor. As possibilidades de ajuda estavam se esgotando. As prometidas medidas de ajuda do Governo passavam por intermináveis burocracias.

      Começaram a se intensificar o registro de saques nas feiras livres e em  depósitos de merenda escolar e depósitos de alimentos nos hospitais. Alguns grandes supermercados também foram saqueados, tendo o maior deles ocorrido na cidade de Souza. Para a Polícia isoladamente prevenir essas ações era impossível. Reprimi-las era impensável.

         Passava do mês de junho quando chegou a ajuda do Governo Federal através da abertura das frentes de emergências em toda a região do sertão. Era um trabalho coordenado por Oficiais do Exército e que consistia na construção de baldes de pequenos açudes, feitos de terra batida, em locais de passagem de água em tempos de chuvas. Os únicos instrumentos empregados pelos trabalhadores eram carro de mão, enxada e pá.

    Cada obra, quase sempre realizada em terras de apadrinhados políticos, com perspectivas de futuros lucros, empregava centenas de homens e mulheres, a maioria alistada pelos Prefeitos através de critérios inteiramente subjetivos, e muitos deles não trabalhavam, só integravam a folha de pagamento. Era uma rica oportunidade de formação ou fortalecimentos dos curais eleitorais. Esse era apenas um pequeno aspecto da conhecida indústria da seca.

       Cada alistado ganhava meio salário mínimo por mês, mas era comum uma família ter mais de uma pessoa alistada. As coordenações das frentes de emergência não dispunham de transportes para os trabalhadores que, por isso, eram obrigados a andar a pé por cerca de duas horas para chegar aos locais de trabalho. Saiam de casa pela madrugada, conduzindo uma vasilha a tiracolo com o almoço, a base de feijão, arroz e, às vezes, ovo cozinhado,  e voltavam ao por do sol.

     Os trabalhadores sabiam que aqueles baldes que estavam construindo não resistiriam às primeiras chuvas, e por isso acreditavam que não estavam produzindo nada, o que gerava uma desmotivação generalizada.  Os deslocamentos de ida e de volta para o trabalho, feitos sempre por grandes grupos, parecia uma caminhada de condenados para o cadafalso e lembravam cenas da obra “Os miseráveis”, de Victor Hugo. Presenciei muitas dessas caminhadas, em filas indianas, nas margens das estradas, nas proximidades da área rural de Cajazeiras, nos fins de tardes.

       Nesse período o Governo, de forma descontínua e desorganizada, também fazia distribuição de alimentos nas zonas rurais, o que era feito pela Polícia Militar. Muitos carregamentos de feijão e de arroz destinados a esse programa saiam da capital com destino à Companhia de Cajazeiras, mas lá não chegavam. Nunca se soube aonde essas cargas foram parar.

      Uma das formas de desvios desse material era a simulação de saques nos caminhões. Chegamos a flagrar uma situação dessas, na cidade de Antenor Navarro, atualmente Rio do Peixe, e adotamos os procedimentos de polícia judiciária. Mais um aspecto da indústria da seca.

       Embora as frentes de trabalho não fossem suficientes para contemplar a todos os necessitados, nesse período era muito difícil se conseguir uma empregada doméstica nas cidades da região, o que pode ser explicado pelo orgulho ou comodismo das mulheres atingidas por essa situação ou pela baixa remuneração oferecida para esse fim.

      Quando era feito pagamento das frentes de emergências, os poucos e pobres cabarés existentes na região, assim como as casas de jogo de baralho e de sinuca, tinham uma movimentação bem maior, sendo comum o registro de pequenos conflitos provocados pelo excesso do uso de bebida alcoólica, o que implicava na necessidade de uma maior atenção da polícia. Mas também o comércio das cidades se beneficiava muito com a circulação desses elevados recursos.

       Foi se aproximando o final do ano e o quadro em nada mudava. O sertanejo não se conformava em viver de ajuda. O que ele queria mesmo era trabalhar na agricultura, em suas pequenas propriedades ou empregar a sua força produtiva no conhecido trabalho rural de aluguel. E isso só seria possível com a chegada de chuvas.

     Todos os tipos de experiências adotados na cultura local para prever a chegada de chuvas eram realizados e os resultados sempre eram negativos. As esperanças de um bom inverno no próximo ano estavam se tornando em um tormento. E mais uma vez, a fé foi o único caminho que restou a essa gente sofrida. As promessas aos santos de devoção foram se intensificando. Nessas ocasiões São José é unanimidade.   Conversei com muitos fiéis que fizeram promessas. A força da fé dessas pessoas me comovia.

      Em meio a muitas denúncias de desvios de recursos públicos destinados à assistência da população atingida pela seca em todo sertão, começou 1984, ainda mais seco e mais quente. O Governo, alegando questões orçamentárias, suspendeu as frentes de emergências.

       Foi como se o Governo hoje suspendesse o programa de bolsa família. Voltou tudo à estaca zero. Recomeçaram os desesperos e os saques. A população ficou apreensiva. Os comerciantes temiam invasões dos seus estabelecimentos. Os políticos locais pressionaram os Governos do Estado e o da União para o retorno das frentes de emergências.  Por interferência minha, junto aos políticos locais, muitos desses contatos eram feitos do Gabinete do Comando da Companhia de Polícia.

       O Ministro do Interior Mário Andreaza, em campanha para Presidente da República, ainda em eleições indiretas, esteve em Cajazeiras e, em ato público coberto pela mídia nacional, prometeu atender às todas as reivindicações dos sertanejos. Chegou o mês de março sem o menor sinal de chuva e sem as prometidas ajudas do Governo.  Mas a força da fé do sertanejo continuava firme. Em Cajazeiras, no dia 19 de março, uma segunda-feira, católicos de uma pequena comunidade realizaram a tradicional procissão de São José. Depois de uma costumeira ronda de fiscalização do policiamento da cidade e de visitas a algumas autoridades, onde a conversa era sempre sobre a situação dos agricultores, resolvi passar pelo local da procissão.

      O andor do Santo saiu de uma residência humilde às dezoito horas.  Os fiéis, na maioria agricultores, todos em trajes brancos, compareceram ansiosos para receber a graça pedida em meio a tantas orações. Surpreendentemente, desde o começo da tarde daquele dia, o tempo estava nublado, abafado, muito quente e seco.

      Quando o andor chegou ao meio da rua, carregado pelas mãos calejadas de homens e de mulheres do campo, ouviu-se uma série de trovões que estremeceram a cidade e provocaram a queda de energia elétrica em todo aquele centro urbano .  De repente caiu a chuva mais forte que aqueles fiéis já tinham visto.

        Seguiram-se relâmpagos que iluminaram as ruas. O azul e branco do andor pareciam focados pelos feches de luz dos relâmpagos, que faziam surgir na escuridão o perfil da imagem do Santo. Parecia efeitos especiais em filmes de ficção científica. Os adornos do andor foram caindo pela rua e as velas conduzidas pelos fiéis se apagaram, mas o povo, ensopado, não arredou o pé.

     Em meio ao cheiro característico do efeito da chuva no calçamento quente, o cotejo teve início com gritos de viva São José e cantos religiosos entoados com entusiasmo por todos.  Homens e mulheres estendiam os braços aos céus, acenando com chapéus de palha, em gestos que expressavam uma profunda gratidão. Marcada por choros de alegria e calorosos abraços entre os fiéis, a procissão foi caminhando lentamente.

      De todos os lados chegava gente para se incorporar ao ato. Do interior de Viatura Policial, no Fusca Preto da PM, eu assistia aquela cena de forma intermitente em razão do pouco efeito da ação do limpador que não impedia que o para-brisa ficasse embaçado, e dos filetes de lágrimas que a emoção me traziam.

      Toda cidade comemorou. A partir de então, as chuvas caíram em todo sertão com a regularidade e na quantidade desejadas pelos sertanejos, e não houve mais saques, nem pedido de ajuda, nem fome e nem humilhação.  Força da fé do sertanejo foi posta  à prova... e venceu.

  Veja também Aniversário de Cajazeiras em 1976   Comandante de um Batalhão preso na véspera de uma eleição  

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3 Comentários em "A indústria da seca"

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Ugo Bezerra
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Excelente testemunho, o qual narra a realidade infelizmente ainda vivida por nosso povo; seja no nordeste ou no norte. Cabe assim às forças auxiliares, bem como Exército, Marinha e Aeronáutica o pronto socorro àquelas vítimas da corrupção e descaso. Ser policial militar é acima de tudo estar a serviço da ordem, por mais duro que seja esse sacerdócio. Parabéns!

Luiz Avelino dos Santos Júnior
Visitante
Luiz Avelino dos Santos Júnior

Muito bom.